textimagens - rosaura soligo

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

disilimina

leonardo soares

Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos. Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve/que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. [Manoel de Barros]

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

vida longa!

leonardo soares




apesar
dos apesares,
muito mais
por causa
dos por causas,
nós gostamos
de você,
companheiro.
nunca antes
na história
deste país
gostamos tanto
de quem lá esteve.
tim-tim!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

cidade tragada

olhos noturnos miram o nem ver, guiam os passos mal desenhados por caminhos escuros, entre becos e vielas brilha o vestido vermelho da prostituta, o rosto insone, boca pintada de cor igual, olhar embriagado do último boêmio da cidade mergulhada na penumbra da madrugada fria e gelada, garoa cinza alarga a solidão, selva de concreto imersa em caos.
olha de viés procura disco voador no céu escondido do inverno, saci fantasiado de gente, girando redemoinho de vento de chuva, infinito iluminado de luz do sol que insiste em clarear o rosto sujo do mendigo que ninguém vê, amanhecido no passeio de passos apressados, invisível assombração dobrando a encruzilhada, ventando a saia rodada da mulher do guarda.
o boteco irradia luz, Fagner na vitrola, reluz, sobressai, cativa o passante.
adentra o salão, achega ao balcão quase negro, monótono tristonho, recanto sem luz, procura na prateleira a garrafa de invisível, a dose de disco voador, o trago ensacizado, o brinde assombrado, cachaça balança saia, beijo na boca bêbada vermelha da puta gostosa do centro da cidade. [leonardo soares]                                                     

leonardo soares

terça-feira, 25 de outubro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

por isso.

walter takemoto







porque
eu só preciso
de pés livres,
de mãos dadas
e de olhos
bem abertos
[guimarães rosa]

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

ao jeito que namorasse

leonardo soares

falava com as árvores e com as águas
ao jeito que namorasse.
todos os dias ele arrumava as tardes
para os lírios dormirem.
usava um velho regador para molhar todas as manhãs
os rios e as árvores da beira.
dizia que era abençoado pelas rãs e pelos pássaros.
a gente acreditava por alto.
assistira certa vez um caracol vegetar-se na pedra.
mas não levou susto.
... era muito encontrável isso naquele tempo.
até pedra criava rabo!
a natureza era inocente.
                                                         [Manoel de Barros]

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

pode ser...

leonardo soares
eu estou imaginando
que a estrada pensa
que eu também sou como ela:
uma coisa bem esquecida.
pode ser.
[Manoel de Barros]

terça-feira, 11 de outubro de 2011

nada, nada, nada havia

leonardo soares






passada a falta de ar
quando os vapores
choveram enfim
elas saíram ligeiras à rua
pras tarefinhas frugais.
e
das sempre mesmas
velhas coisas
dos sempre mesmos
velhos passos
nada, nada, 
nada havia
que fosse igual
nesse dia.

domingo, 2 de outubro de 2011

nunca antes na história deste país

leonardo soares

Assim,
nossa história correu mundo,
conheceu todos os lugares,
viu cidades imensas,
ouviu a queixa das pessoas,
o som das trombetas
e o barulho
dos cascos dos cavalos do rei.
Viu bandidos serem enforcados,
foi presa,
foi solta,
foi presa de novo,
fugiu.
[Leminski]